A mais nova “lista suja” traz uma fabricante da Coca-Cola e a Via Veneto, dona da marca de roupas Brooksfield Dona, entre as empresas e empregadores flagrados com trabalho escravo. Publicada hoje pelo Ministério do Trabalho, essas são apenas dois dos 50 novos integrantes da lista, que traz 209 empregadores no total. O cadastro tem sido utilizado para análise de risco por investidores e bancos públicos e privados. Além disso, há empresas brasileiras e internacionais que evitam fechar negócios com esses empregadores. Veja aqui a lista completa.

A maior marca nacional a ingressar na lista é a Via Veneto. Roupas da sua marca feminina, a Brooksfield Donna eram costuradas por bolivianos em jornadas de mais de 12 horas em uma oficina pequena, escura e com forte odor devido à ausência de limpeza. Na fiscalização, cinco trabalhadores imigrantes foram resgatados, todos bolivianos. Entre eles, uma adolescente de 15 anos. Na zona leste de São Paulo, os costureiros trabalhavam sem registro em carteira de trabalho e dormiam no próprio local de trabalho. Alguns, na cozinha.

"Catálogo (à esquerda) mostra roupa com a mesma estampa encontrada na oficina (à direita)"

“Fadiga, estresse, exaustão, dores nas costas, coluna, olhos e juntas, dificuldade para dormir e despertar, sono intranquilo”, foram algumas das consequências físicas da jornada exaustiva, segundo registro do relatório de fiscalização.

Os auditores descobriram que a Brooksfield Donna repassava os pedidos de peças para a confecção MDS, que, por sua vez, repassava as peças cortadas para costura dos imigrantes bolivianos. O processo, considerado como quarteirização da mão-de-obra, foi coberto pela Repórter Brasil em matéria publicada em 2016.

Exaustão

A nova lista suja traz ainda a fabricante de Coca-Cola, a Spal Indústria Brasileira de Bebidas, que integra o grupo Femsa. Fundado no México e presente em 11 países, é considerado o maior engarrafador de Coca-Cola do mundo. No Brasil, são 10 unidades para engarrafamento e 43 centros de distribuição. O tamanho da empresa contrasta com o modo como seus trabalhadores eram tratados.

Os caminhoneiros e ajudantes de entrega da Coca-Cola realizavam, em média, 80 horas extras por mês. Situações extremas chegavam a 140 horas extras por mês. Além de dias inteiros de trabalho ininterrupto na mesma semana em que o funcionário já acumulava o cansaço por fazer jornadas de 12 e 14 horas.

Em alguns casos, a sequência de jornadas exaustivas terminava em afastamento por atestado médico. Os auditores entenderam que essa situação colocava em risco a saúde e a segurança dos funcionários. A fiscalização ocorreu em 2015 e 2016 em quatro unidades da Spal em Belo Horizonte e Contagem, em Minas Gerais.

Um motorista relatou que após encerrar o trabalho às 0h30 chegou em casa 2h com a obrigação de retornar ao trabalho às 6h30. Ele disse aos auditores que tomou banho, jantou e ficou vendo televisão. “Se dormisse não conseguiria levantar no horário de trabalho”, informou em seu depoimento aos fiscais. “Sabia que, se não fosse trabalhar, receberia advertência no outro dia”, disse à fiscalização. A Repórter Brasil cobriu o caso em 2016.

Prática ainda disseminada

Além de grandes marcas, a lista suja traz ampla diversidade de empregadores, mostrando que a prática da exploração ainda está disseminada por diferentes setores do país. Entre os 50 que entraram no cadastro, há fazendeiros que já ocuparam cargos de vereadores ou de prefeitos. E até uma dona de casa da zona rural de Rubim, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.

Corcina Soares Neta está na lista porque, em julho de 2017, sua casa foi flagrada com uma empregada doméstica de 68 anos em situação análoga à escravidão. A vítima lavava roupa, cozinhava, limpava a casa sem direito a folga e sem receber pagamento há oito anos. “Tal qual os escravos no Brasil Colônia”, destaca o relatório do Ministério do Trabalho.

Os auditores apontam que esse quadro foi sustentado por uma conjunção de fatores, que incluem o aspecto cultural. Faltava dinheiro para ir embora, faltava informação, já que a trabalhadora era analfabeta, mas também havia um sentimento de gratidão moral da vítima. Ela morava com seu filho em um galpão no fundo da casa, o local era cercado pela criação de galinhas da patroa.

A água que os trabalhadores bebiam vinha de uma grota com livre acesso aos animais da fazenda

Na lista também entram dois políticos. Francisco Ludovico de Medeiros, conhecido como Chico Mangueira, ex-prefeito da cidade mineira de Martinho Campos. Ele mantinha uma carvoaria em sua fazenda, de onde foram resgatados 26 trabalhadores.  

Além do ex-vereador de Marabá, Miguel Gomes Filho, o Miguelito, que foi cassado do cargo no ano passado acusado de abuso de poder e contratação irregular de funcionários no período que presidiu a Câmara Municipal. Na fazenda de Miguelito, os auditores resgataram nove trabalhadores que dormiam em um barracão de madeira de dois andares. No primeiro, ficavam porcos.

Ratos entravam pelas frestas do piso e das paredes, roíam os mantimentos e andavam sobre os móveis. A água que os trabalhadores bebiam vinha de uma grota com livre acesso aos animais da fazenda.

"Entregadores faziam jornadas que chegavam a 140 horas extras por mês"

 

A Via Venetto foi procurada pela reportagem, mas não respondeu antes do fechamento. As respostas serão incluídas quando as empresas se manifestarem a respeito.

A Spal informou, em nota de sua assessoria de imprensa, que não comenta processos administrativos ou judiciais em andamento. A empresa afirmou também que “sua atuação é e sempre foi pautada no cumprimento rigoroso das leis trabalhistas e das políticas de direitos humanos vigentes” (leia nota  da Spal na íntegra).

Na época do flagrante, a Femsa afirmou que realizou ajustes operacionais relacionados à jornada dos caminhoneiros e negou a existência de trabalho escravo em seus negócios. Já a Via Veneto afirmou que não terceiriza seus serviços, e que “não mantém  e nunca manteve relações com trabalhadores eventualmente enquadrados em situação análoga a de escravos pela fiscalização do trabalho” (Leia a íntegra da nota da empresa sobre o flagrante em 2016).

Corcina Soares Neta disse que a inclusão dela na “lista suja” é uma injustiça. “Foi para provocar tumulto, mas a justiça divina é maior”, afirmou. Ela disse que não explorava o trabalho da vítima. Os políticos Miguelito e Chico Mangueira não foram localizados pela reportagem.

O que é a “lista suja”?

A “lista suja” é uma base de dados mantida pelo Ministério do Trabalho e pelo Ministério dos Direitos Humanos, criada em novembro de 2003. A lista expõe casos em que houveram resgates de pessoas das condições consideradas análogas à escravidão. As empresas na lista suja deste ano foram fiscalizadas entre 2005 e 2018.

O chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, Maurício Krespsky Fagundes, destaca que antes de entrar na lista suja os empregadores têm direito de se defenderem em duas instâncias administrativas no Ministério do Trabalho. “É oferecido amplo direito de contraditório e defesa do empregador”, destaca Fagundes.

Os empregadores envolvidos permanecem por dois anos na relação. Caso façam um acordo com o governo, o nome fica em uma “lista de observação” e pode sair depois de um ano, se os compromissos foram cumpridos.

Quatro elementos definem a escravidão contemporânea no Brasil hoje. O trabalho forçado, que cerceia o direito de ir e vir, é apenas um deles. Há ainda a condição degradante, a jornada exaustiva e a servidão por dívida, quando a pessoa precisa continuar trabalhando para pagar dívidas com o patrão.