De acordo com dados divulgados recentemente pela Secretaria de Defesa Social (Seds), o crime de estupro teve queda de 3,9% entre janeiro e agosto de 2017 em Minas,  em comparação com o mesmo período de 2016. No ano passado, foram registrados 946, número que, este ano, caiu para 909.

Porém, em Belo Horizonte, a situação é outra. Segundo estatísticas da Seds, entre janeiro e agosto de 2017,  foram 170 casos de estupros consumados, contra 150 em igual período do ano pa e.

Em entrevista, ela falou da importância de manter o estupro sempre em pauta e de as mulheres denunciarem este tipo de crime, bem como o discurso machista que há em torno do assunto.

Camila Miller, de 39 anos, é formada em direito, tendo ingressado na Polícia Civil em 2007. Um ano depois, ajudou a implantar a Delegacia de Mulheres de Capelinha, no Vale do Jequitinhonha, onde também ficou responsável pela Delegacia de Homicídios da região. Em 2012, após quatro anos na Polícia Civil, assumiu a Delegacia de Defraudações e Combate ao Tráfico de Drogas de Manhuaçu, na Zona da Mata mineira. Dois anos depois, em 2014, assumiu a Delegacia de Mulheres de Vespasiano, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) e, em  seguida, o 2º Distrito Policial da cidade. Em outubro de 2016, Camila foi chamada a assumir a Delegacia de Mulheres do Barreiro e, dois meses depois, a Delegacia Especializada de Combate à Violência Sexual, em Belo Horizonte.

Para receber os casos de estupros da capital, ouvir vítimas e suspeitos e abrir inquéritos, a delegada conta com uma equipe valiosa de três auxiliares na investigação. Semanalmente, 13 queixas de violência sexual chegam à delegacia, colocando o estupro como um dos principais crimes contra a mulher. Camila Miller não considera que esteja ocorrendo um aumento dos casos de estupro em Belo Horizonte, e sim uma redução da subnotificação, fato visto por ela como algo positivo, pois indica que as mulheres estão denunciando mais. Confira a entrevista completa:

O que caracteriza a violência sexual?

Qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal ou a conjunção carnal propriamente dita caracteriza-se como violência  sexual contra a mulher.

Por que, em pleno século 21, ainda há tantos registros de estupro?

Porque vivemos em uma sociedade machista, patriarcal, onde a mulher ainda está evoluindo e a sociedade também segue evoluindo. Mas ainda estamos em um processo de transcendência, de evolução. De fato, não estamos em uma condição igualitária entre homens e mulheres, como acreditamos ser a ideal.

Você acha que hoje as mulheres estão denunciando mais que no passado?

Hoje, com certeza, graças à circulação de informação, que é muito maior, houve uma facilitação da denúncia. As mulheres estão mais informadas, empoderadas, têm acesso à informação pela internet, pela TV, pelas redes sociais, de uma forma bem diferente do que há vinte anos. Hoje, a mulher tem muito mais consciência do que é a violência sexual contra ela. Antes, era algo considerado normal. A dona de casa apanhava do marido, era obrigada a práticas sexuais contra a vontade dela e achava que tudo aquilo era normal.

O portal Bhaz fez um levantamento no site da Secretaria de Defesa Social e constatou que, em BH, houve um aumento dos casos entre os meses de janeiro e agosto de 2017, em comparação com 2016. Ano passado, foram registrados 150 casos consumados de estupro. Este ano, foram 170 casos. Como você analisa este aumento?

Na verdade, eu não creio que houve aumento da prática do crime na cidade. Eu não quero crer nisso. Eu acredito é que a subnotificação esteja diminuindo. As mulheres que sofreram estupro estão procurando mais a delegacia. Estão mais conscientes da importância da denúncia. Muitas, porém, além de não irem à delegacia, evitam procurar as unidades de saúde.

Qual é o impacto da violência sexual na vida da mulher?

O impacto depende de cada pessoa. Porém, é importante lembrar que o estupro é uma violência muito grave e muito grande contra a intimidade da mulher. Há mulheres que encaram a violência de uma forma melhor. Mas, há outras que ficam completamente desestruturadas emocionalmente, psicologicamente, pois é uma situação muito complicada. A dimensão da ofensa à intimidade de cada uma depende do jeito que ela responde à violação.

Você disse que as mulheres estão denunciando mais. Mas é muito comum encontrar mulheres vítimas de abusos sexuais que dizem ter vergonha do que ocorreu e, por isso, preferem não fazer a denúncia.  Como você vê isso?

Isso é, de fato, muito comum. Algumas chegam a ir à delegacia somente um mês depois que ocorreu o ato de violência. Ficam sem coragem, com vergonha de contar o acontecido, preferirando, no dia, tomar banho e ficar quieta.

Por que esta culpabilização?

Porque atinge a intimidade, a sexualidade. Ela se sente culpada e acredita que, de alguma forma, contribuiu para a situação. Chega a pensar:  ‘Eu não deveria ter passado naquela rua’, ou ‘eu não deveria ter passado naquela rua aquela hora’.

O que você diz sobre aqueles que querem justificar a roupa da mulher como um dos motivos do estupro?

Na minha visão, a roupa não faz diferença, porque muitas mulheres são abordadas na ida ou volta do trabalho. É um crime de ocasião. É a cultura machista que cita a roupa ou comportamento como motivadores do ato criminoso. E, sobre essa justifica, é uma tentativa ruim de justificar um ato injustificável.

                                                       

Em uma sociedade machista o estupro é um crime de uma violência tão grande que faz a própria mulher se sentir culpada. Mas ela vai às ruas e diz que não é  (Tânia Rego/Agência Brasil)

Por que é importante falar sobre estupro?

À medida que a gente fala, dá a informação para a população, faz com que a mulher tenha acesso à informação, leia sobre aquela realidade, e fique mais atenta de modo a evitar que seja vítima deste tipo de crime. Sendo vítima, ela vai ter consciência de que não é a única, que, ao procurar o estado, terá uma resposta à violação sofrida. Ela terá a noção de que não tem culpa, mas que é vítima. Que a vítima não contribui para que tenha acontecido o delito. É muito importante que a imprensa informe, debata o assunto de forma permanente. O crime sexual é diferente de quando a pessoa é roubada. O ladrão chega e diz, com uma arma apontada: ‘Me dá seu telefone, sua bolsa’. Nesta situação, a vítima não tem vergonha, ela faz o relato. Mas quando você é vítima de uma violência que atinge sua intimidade, você prefere não contar. Mas, quando a imprensa coloca isso na pauta, informa que há uma delegacia especializada, empodera a mulher, dá a ela coragem para faça a denúncia. Ela toma consciência de que o ato dela de denunciar é importante para impedir que este cidadão continue nas ruas e faça outras vítimas.

A investigação do estupro é algo fácil? O que pode indicar que umas das partes pode estar mentindo?

É algo que tem que se ter muita cautela. Há mulheres que mentem, que resistem a fazer o reconhecimento do autor. Imagine você colocar na prisão uma pessoa que não cometeu o crime. Ele acaba sendo levado para uma cela com outros homens estupradores e vai comer o pão que o diabo amassou. Se eu não tiver a convicção do acontecido eu não indicio o homem. Ali, é a palavra de um contra o outro. Neste um ano à frente desta delegacia, me lembro de dois casos. Em um deles, uma mulher acusou um homem de estupro para encobrir um fato da vida íntima dela que ela não queria que a família soubesse. Nesse caso, ela chegou aqui e fez um estardalhaço. Disse que tinha sido violentada. Mas, na hora de ir para o IML fazer o exame de corpo delito, apontar o local do crime, as características do agressor, ela resistia. Disse que não queria mais falar sobre o assunto, pois estava muito traumatizada. Outro caso foi de um casal homoafetivo. As duas mulheres haviam combinado de acusar um homem. A suposta vítima veio até a delegacia e falou uma história mirabolante. Depois de ser ouvida, questionada, confessou que fez aquilo a mando da companheira. E é importante lembrar que, nestes casos, há o indiciamento por denunciação caluniosa.

Quais são os casos que chamaram a sua atenção nos últimos tempos?

Estamos investigando o caso de uma mulher que foi abordada na porta da faculdade aqui em Belo Horizonte. O autor abordou a vítima como se fosse um assalto. Ela entrou no carro e ele começou a passar a mão nela dizendo: ‘Bem que me falaram que você era bonitinha’. Nisso, o namorado da vítima tentou falar com ela, mas quem atendeu foi o autor, dizendo que ela não poderia falar. Ele começou, então, a mandar mensagens do celular da vítima para o namorado. Nisso, o namorado da vítima lembrou-se que a ex-dele havia prometido mandar estuprar a atual namorada dele. Ele acionou, então, a policia. A vítima, para se livrar do autor, lançou-se do carro em movimento. Após, ela liga para o namorado, que a busca e os dois vão para polícia. Estamos na fase de investigação do caso e de ouvir as partes. A ex-namorada, que seria a mandante, mora em outra cidade e o autor ainda não foi identificado.

O que a senhora diria para as mulheres que conhecem pessoas em um momento de diversão, por exemplo em uma boate? A pessoa não é estranha, mas não chega a ser íntima? É um risco?

A mulher deve estar atenta sempre. Hoje tem sido muito comum mulheres serem violentadas por pessoas conhecidas, que elas acabaram de conhecer numa mesa de bar, em uma festa. Muitas saem para beber, se divertir com outras amigas e ali conhecem um homem, que as vezes é conhecido de uma amiga, que tem um papo bom, se veste bem, conta boas histórias e passa uma confiança a ponto de oferecer carona para levá-la para casa. Neste momento estamos investigando dois casos bem parecidos. Em um deles, a vítima saiu para beber com amigas, colegas. As amigas foram embora e este homem “simpático” ofereceu carona àquela que ele teria escolhido como vítima. A mulher bebeu mais um pouco e acordou no motel, acionando a polícia. No outro caso, as amigas saíram para a balada. Uma delas encontrou um conhecido, que estava acompanhado de mais dois rapazes. Todos beberam muito. Em determinado momento, o grupo se desfaz. As amigas vão embora. O trio ofereceu carona para a que ficou por último. Essa foi levada para o motel, com indícios de ter sido dopada. Eles gravaram no celular o abuso e a deixaram no motel. A funcionária do motel a encontrou e acionou a polícia. A mulher estava dormindo profundamente e, ao acordar, não se lembrava de nada. Seus pertences haviam sido roubados pelos rapazes, que ainda pagaram o motel com nota falsa. Com a placa do carro identificada, localizamos os suspeitos e apreendemos os celulares, que foram encaminhados à perícia. Com estes exemplos queremos mostrar que, às vezes, o algoz está ali sem levantar suspeitas em um ambiente de pura alegria e diversão.

           

O aumento dos registros de estupro é visto por Camila Miller como um sinal positivo, de que as mulheres estão perdendo o medo de denunciar e, com isso, reduzindo os casos de subnotificação, em que a mulher opta pelo silêncio (Tânia Rego/Agência Brasil)

Qual é o perfil do agressor sexual?

Pode ser um conhecido, sim. Há inúmeros casos de maridos que cometem delito sexual. Mas não podemos traçar um perfil deste agressor. Na maioria das vezes, ele só vai com a intenção de cometer o estupro. Ele não vai estuprar e roubar, o que, evidentemente, pode acontecer. Mas, de forma maneira geral, ele vai com o objetivo do estupro. Mas não há como traçar um perfil de classe social, etnia ou mesmo faixa etária. Até mesmo homens idosos comentem estupro. E, desta forma, também não há um perfil da vítima.

O que a mulher deve fazer de modo imediato ao ser vítima de crime sexual?

A primeira coisa que ela deve fazer é procurar um local para cuidar da saúde dela. Buscar ajuda em um hospital de referência, que trabalha com protocolo de atendimento para mulheres vítimas de violência sexual, pois eles fazem a profilaxia para doenças sexualmente transmissíveis. Em seguida, ela deve ligar para a polícia e informar o fato, se esta for a decisão dela.

Cenário Nacional

Publicado em 2016, o 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública  registrou, no Brasil, 45.460 casos de estupro em 2015. Uma redução de 10% em relação a 2014, quando foram registradas 50.438 ocorrências.  No entanto, a publicação ressalta que os dados devem ser mais elevados, já que muitos casos são subnotificados.  Já o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indica em estudos que o número de casos seja, na verdade, 10 vezes maior, correspondendo a algo em torno de 527 mil tentativas ou estupros consumados, número bem acima do que mostram as estatísticas. O Ipea destaca que apenas 10% dos crimes seriam levados ao conhecimento da polícia.