“Estou aqui em Mariana, mas só por enquanto. Quero voltar para a minha casa para plantar minha hortinha, mas a demora só aumenta”. A fala é da dona de casa Benedita Gonçalves de Sena, de 77 anos, uma das vítimas do tsunami de lama que atingiu e devastou o distrito de Bento Rodrigues, na Região Central de Minas, depois do rompimento da Barragem do Fundão, há quase dois anos. As vítimas da tragédia tiveram que deixar suas casas e se mudar para imóveis alugados no município de Mariana. E ainda hoje sofrem a perda do que consideram uma vida com mais qualidade na roça, fora da “cidade grande”. Os problemas são muitos, entre eles, a distância que se estabeleceu entre parentes e a dificuldade de cultivar alimentos para o próprio sustento.A eles se somaram nesta semana a revolta e o desânimo ao verem suspensa a ação penal movida para punir os responsáveis pelas mortes no maior desastre socioambiental do Brasil. A decisão que põe em banho-maria o processo movido contra 22 funcionários e diretores da Samarco e suas controladoras – Vale e BHP Billiton – e da empresa VogBR, foi tomada pela Justiça Federal em Ponte Nova, na Zona da Mata, para análise da alegação da defesa sobre suposto uso de prova ilícita na ação penal.

Em 5 de novembro de 2015, o que parecia um dia comum para Benedita, que estendia as roupas no varal em frente ao quintalzinho –uma gostosa plantação de hortaliças e frutas – virou um pesadelo e deixou um vazio em sua família. A pequena bisneta Emanuelly Vitória Fernandes, a Manu, de 5 anos, entrou na lista das 19 mortos no desastre. Emanuelly, encontrada na região de Ponte de Gama, estava nos braços do pai, junto do irmão Nicolas, quando o mar de barro a levou. “Esquecer, a gente não vai esquecer. Lembro-me dela todos os dias. Só queremos que esse processo acabe para nós voltarmos para nosso lugarzinho”, disse Benedita, com os olhos marejados.

Enquanto os pais da criança se mudaram para Pereira, na Zona da Mata, para tentar reconstruir a vida, a bisa Benedita precisou trocar a grande casa de nove cômodos por um pequeno apartamento de três quartos com os dois netos. Em uma cozinha conjugada com uma pequena sala de televisão, Benedita preparava ontem arroz, feijão, angu e carne moída para o almoço. “Uma neta dorme comigo e o outro tem o quarto só pra ele. Gostaria de poder receber minha família, ter um espacinho para dormirem. Agora, todos precisam ficar esparramados em colchões pelo chão”, lamenta. O relato da senhora de cabelos grisalhos se repete entre os antigos vizinhos, agora espalhados pela cidade com mais de 60 mil habitantes. Já em Bento Rodrigues, eram cerca de 600 moradores.

Porém, no Centro de Mariana é fácil identificar alguém que conheça antigos moradores de Bento. “É só seguir reto, a casa cinza, logo em frente, tem uma família. Logo ao lado, na grade verde, tem outra”, disse uma mulher que passava pela rua. Na casa cinza encontrava-se Oldileia Celi Caetano, de 42, dona da casa, morando com as duas filhas adolescentes, de 12 e 15 anos. “Aqui, só temos muros altos. Lá, eram cercas de bambu. Podíamos conversar com a vizinha pela janela. Eu tenho muita saudade disso”, disse a dona de casa. Os gastos também aumentaram com a vinda para cidade. “Lá, eu tinha minhas galinhas, minha própria terra. Meu sustento vinha de casa. Agora, preciso comprar vasos e adubo para plantar em pequenos vasinhos”, contou a dona de casa.

Oldileia conta que as filhas já voltaram para a rotina na escola e fizeram novos amigos. Mas faz questão de sair no portão de casa para conferir se as adolescentes pegaram o ônibus. “Eu fico de olho”, contou a mãe, que se sente mais insegura na cidade em que não escolheu morar. “Quando chegamos, tive que brigar para conseguir um transporte para levar as meninas para a escola. Se o ônibus as buscava na porta de casa, agora, não pode ser diferente”, disse a dona de casa, que se preocupa. Luíza Fernanda, de 24, também teme pelas filhos de 7,  3 e 1 ano. “A mais velha não pode assistir a nada na televisão pois ela começa a chorar. Tinha vários pesadelos e dificuldade para dormir”, lamentou a mãe.

REVOLTA Indagada sobre a suspensão do processo para punir os responsáveis pela tragédia, Odileia é enfática: “Para destruir foi rápido, né? Destruiu e matou sem avisar ninguém. Agora, para punir, cadê? O que vale? Vale um simples cartão e um aluguel de casa? Era isso a nossa vida lá?”. Ela diz não acreditar no retorno da família para o novo Bento – a área prometida para os antigos moradores do distrito destruído –, mas exige uma casa própria para morar. O vizinho de porta, Claudinei Marques da Silva, de 36, ex-funcionário da Samarco, compartilha a opinião: “Se antes o processo estava parado, agora ele está congelado. Eu já perdi as esperanças de voltar. A Samarco não resolve nada”, disse, desanimado. Claudinei mora ao lado da filha, dos pais e dos irmãos e sobrinhos, somando oito pessoas, em uma casa com quatro quartos e uma pequena área de lazer: “Agora, só fica o sentimento de revolta.” Ainda muito emocionado ao lembrar da tragédia, ele conta que começou a prestar serviço para a Samarco, por uma empresa terceirizada, no dia em que a barragem se rompeu. “Foi meu primeiro dia de trabalho. Mas, como você tem que ter uma série de documentos, eu não estava liberado para ficar próximo da barragem. Então voltei para a empresa. Quando vi, tudo já tinha acontecido. Foi desesperador”, relembrou.

O presidente da Associação Comunitária de Bento Rodrigues, José do Nascimento de Jesus, mais conhecido como Zezinho do Bento, outra vítima da lama – ele saiu de casa apenas com uma bermuda e um celular no bolso, agora se mobiliza para lutar pelos direitos dos moradores atingidos pela barragem. “A Justiça foi falha, o caso tem que ser julgado. A empresa tem que pagar por aquilo que fez de errado, por isso estamos pedindo o reassentamento o mais rápido possível. A gente só está morando na cidade porque é a necessidade. Gosto do pessoal de Mariana, mas quero minha vida na roça, onde eu poderia acordar e tirar o leite da vaca e fazer queijo”, diz Zezinho.

CRONOGRAMA A diretora de Desenvolvimento Institucional da Fundação Renova, criada pela Samarco para reparação dos danos, Andréa Azevedo, disse ontem que entende que são legítimas “as preocupações e desconforto” dos moradores de Bento Rodrigues que estão morando em casas alugadas e tiveram sua vida alterada, mas esclarece que todas as ações estão dentro do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado entre a Samarco, Vale BHP e diversos órgãos da administração pública nos níveis federal e estadual, incluindo os prazos. “Trabalhamos para que o reassentamento dos moradores ocorra em março de 2019, como foi estipulado”, disse Andréa.

A diretora disse, ontem, que todas as questões, incluindo as urbanísticas, foram discutidas durante meses com os antigos moradores de Bento Rodrigues: “Tivemos 70 reuniões com a comunidade e um dos pontos ressaltados por todos foi a relação de vizinhança.” Andréa explicou que os projetos são avaliados por uma câmara técnica de infraestrutura e que alguns pontos, como uma obra de terraplenagem para corrigir uma declividade, fazem parte de um processo normal de ajustes.