Em 2009, o Governo de Minas Gerais gastou R$ 34,45 milhões com o cumprimento de sentenças judiciais relativas à área da saúde. O valor não parou de aumentar nos anos seguintes, atingindo R$ 291,7 milhões em 2013, um espetacular aumento de 746,7%. Mesmo descontando-se a inflação do período, de acordo com o IPCA, o aumento ainda é de assustadores 610%. Essa escalada chamou atenção para a explosão do fenômeno conhecido como judicialização da saúde, que se repetiu em outros Estados, assustando o País e provocando a reação das instituições públicas.

Os números sobre a evolução da judicialização são do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE-MG), uma das várias instituições mineiras que se viu obrigada a dar uma atenção especial ao problema. Nos dias 14 e 15 de setembro, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) promove o Ciclo de Debates Judicialização da Saúde para analisar as causas do fenômeno, divulgar novas formas de enfrentar a questão e apontar possíveis avanços futuros.

A judicialização da saúde acontece quando alguém recorre à Justiça para obter um medicamento ou tratamento médico que foi negado pelo poder público ou por um plano particular de assistência. Apesar de o TCE-MG indicar um arrefecimento da judicialização em 2014 (o valor gasto com ações judiciais da saúde caiu pela primeira vez, atingindo R$ 221,93 milhões), o desembargador Renato Dresch, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), tem dúvidas se a redução dos gastos é definitiva. “Os números do TCE são reais, mas o problema é que a Secretaria de Estado de Saúde, de um ano para outro, não executou R$ 1,5 bilhão, que ficaram em restos a pagar. Suspeito que o gasto de 2014 ficou abaixo do que deveria. Só no final deste ano é que vamos ver o efeito real disso”, afirma o desembargador.

Autoridades e especialistas concordam que, até certo ponto, a judicialização é positiva e um indicador de cidadania, uma vez que as pessoas estariam cada vez mais fazendo valer seus direitos. “A judicialização não pode ser demonizada. A política nacional de DST-Aids foi toda construída a partir da judicialização. Não há estado democrático de direito sem acesso à Justiça”, afirma o promotor Gilmar de Assis, coordenador do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde de Minas Gerais (CAO-Saúde). Por outro lado, a proporção alarmante que o fenômeno alcançou em todo o País revela também as deficiências de nosso sistema de saúde e sua vulnerabilidade à pressão da indústria farmacêutica.

Precariedade do atendimento é causa da judicialização

Autor do requerimento para realização do ciclo de debates e médico oncologista, o deputado Doutor Wilson Batista (PSD) acredita que a judicialização exagerada é um sintoma da fragilização progressiva do Sistema Único de Saúde (SUS). O parlamentar explica que, como a tabela do SUS remunera mal os hospitais pela maior parte dos procedimentos realizados, eles acabam limitando os atendimentos porque, sem isso, acumulariam uma dívida imensa. Isso cria a fila de pacientes e provoca a judicialização, porque eles recorrem à Justiça para fugir da espera. “O SUS, às vezes, paga aos hospitais e aos médicos até três vezes menos que o custo real”, diz o deputado.

O presidente da Comissão de Saúde da ALMG, deputado Arlen Santiago (PTB), diz que a responsabilidade maior pela crise do sistema de saúde é da União. “O Conselho Federal de Medicina calculou que o SUS está repondo mais ou menos de 50% a 60% dos gastos dos hospitais. Isso é falência. Os hospitais acumularam uma dívida que chega a aproximadamente R$ 17 bilhões em todo o País. Em Minas Gerais, chega a R$ 1,7 bilhão”, afirma.

Os deputados defendem que corrigir a tabela do SUS é fundamental para reduzir a judicialização. É preciso, no entanto, evitar o problema inverso. “Se aumentar a tabela do SUS, há o risco de excessos. Já ocorreu no passado”, alerta o deputado Doutor Wilson Batista. Ele conta que, quando a operação para retirada da vesícula biliar era bem remunerada pelo SUS, surgiram esquemas de fraude. Esse órgão é retirado quando apresenta cálculos, as “pedras na vesícula”. Na fraude relatada pelo parlamentar, ultrassonografistas falsificavam laudos indicando cálculos que não existiam. O médico retirava a vesícula e inseria cálculos provenientes de cirurgias anteriores, em outros pacientes. “Eles chamavam isso de banco de cálculos. Colocavam na vesícula e mostravam para o paciente recém-operado”, relata.

Por isso, o deputado Doutor Wilson Batista considera que reforçar a auditoria nos hospitais do SUS é outra medida fundamental. “Atualmente, o governo dá R$ 1 milhão para um hospital e não fiscaliza. O hospital embeleza, coloca granito nas alas para atender o paciente particular e o atendimento do SUS continua na porta dos fundos, com paciente na maca quebrada”, critica.

Medicamentos representam mais de 80% dos gastos

Dados do TCE-MG indicam que a maior parte dos gastos relacionados à judicialização da saúde são para a compra de medicamentos. Em 2014, por exemplo, o Governo do Estado gastou R$ 188,78 milhões com a compra de remédios, para cumprimento de decisões judiciais. Isso representou 85% da verba consumida pela judicialização naquele ano. Entre 2010 e 2014, esse percentual ficou entre 85% e 92%.

O fato de os medicamentos representarem quase a totalidade das demandas judiciais da saúde alimentam suspeitas sobre a indústria farmacêutica, que teria aprendido a explorar, muitas vezes de forma indevida, o princípio constitucional que garante a saúde como um direito de todos. “A indústria da judicialização existe quando há um conluio entre médicos, laboratórios e escritórios de advocacia. O médico ganha um bônus financeiro ao prescrever o medicamento ou prótese de determinado fabricante. Pode ser enquadrado como formação de quadrilha”, adverte o promotor Gilmar de Assis.

Mesmo quando não há práticas ilegais, o deputado Doutor Wilson Batista explica que a pressão da indústria farmacêutica estimula a prescrição de remédios mais caros e, às vezes, relega ao esquecimento alguns produtos muito mais importantes, que não geram lucro nem bônus financeiros. Um exemplo dessa distorção, segundo ele, é a reposição de cálcio na gravidez. Essa reposição é importante e barata, mas muitas mulheres não tomam, pois os médicos não se preocupam em prescrevê-la. “Se fosse um medicamento novo e caro, com certeza as gestantes todas estariam com essa receita na mão, porque o laboratório ia ganhar muito”, afirma.

O deputado Arlen Santiago vê a mesma distorção. “Para tratamento do câncer de ânus, o melhor produto para quimioterapia é a mitomicina C, que está sumindo do mercado por ser muito barata”, critica.

Instituições reagem à pressão industrial

Para o presidente do TCE-MG, conselheiro Sebastião Helvécio, a indústria farmacêutica teve um papel ativo na explosão da judicialização. “O mercado da saúde não tem nada de ingênuo; gasta mais que o mercado da guerra”, compara o conselheiro, que também é médico. Para identificar esse tipo de desvio, o TCE-MG começou, recentemente, a analisar e cruzar informações sobre os processos judiciais relacionados à saúde. “Muitas vezes havia um pequeno número de médicos e advogados determinando uma quantidade muito grande de pedidos dos mesmos produtos”, afirma Helvécio.

Segundo o conselheiro, esse cruzamento de informações já municiou alguns processos judiciais e contribuiu para o trabalho da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Máfia das Próteses e Órteses, no Congresso Nacional. A comissão investiga fraudes no SUS promovidas por médicos e representantes de empresas de produtos hospitalares. Para Sebastião Helvécio, o fato de empresas, médicos e advogados saberem que as ações judiciais estão sendo monitoradas contribuiu para a redução do volume da judicialização, em 2014.

Atendimento especializado - Outras instituições também estão reagindo contra a indústria da judicialização. A Defensoria Pública de Minas Gerais instituiu, em 2011, um atendimento especializado para a saúde. Por meio de um termo de cooperação com a Secretaria de Estado de Saúde, recrutou dois farmacêuticos que apontam, para cada demanda de medicamento que não é fornecido pelo SUS, alternativas que já estão incorporadas pelo sistema. Esse parecer é enviado ao médico que receitou o medicamento original.

Para rejeitar as alternativas apresentadas pela Defensoria Pública, o médico que receitou o medicamento não incorporado pelo SUS precisa justificar por escrito. Isso inibe abusos, pois esse documento poderia comprometer um médico que fizesse uma prescrição apenas para beneficiar um laboratório. “Buscamos, assim, evitar a pressão dos laboratórios e não sermos instrumentalizados por ela”, afirma o defensor Bruno Barcala Reis.

Reis integra a Defensoria Especializada em Saúde. Ao mesmo tempo em que censura o lobby da indústria farmacêutica, ele também acredita que a demora do Ministério da Saúde em incorporar alguns medicamentos ao SUS não se justifica. Segundo ele, se três produtos específicos fossem incorporados hoje, cerca de 40% da demanda da Defensoria Especializada desapareceria.

Esses remédios são o Lucentis, para degeneração macular (que custa cerca de R$ 3,7 mil a ampola); o Cinalcalcete, para controle da atividade renal; e o Micofinolato de mofetila, que controla a atividade do sistema imunológico. A demora na incorporação desses medicamentos, em sua avaliação, se deve a uma estratégia equivocada: o poder público prefere pagar via judicial para poucos do que fornecer a todos por meio do SUS, o que poderia sair mais caro. “Só que a ação judicial também tem um custo”, lembra Reis.

O Sindicato das Indústrias de Produtos Farmacêuticos e Químicos para Fins Industriais (Sindusfarq-MG) foi procurado para repercutir as críticas ao setor, mas não respondeu às perguntas encaminhadas.