Em 2007, fui ao Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, para apurar uma denúncia de que grandes empresas siderúrgicas haviam se associado ao crime organizado para comprar grandes quantidades de carvão obtido da derrubada de árvores da Mata Atlântica.

O Jequitinhonha tem uma extensão de 50.143.249 quilômetros quadrados. É mais que o dobro do território do Estado de Sergipe. Nessa região vivem 732 mil pessoas, espalhadas por 51 municípios. Trata-se da área mais pobre de Minas Gerais. Até o final do século 18, essa parte de Minas pertencia à Bahia. Há mais de 300 anos, garimpeiros descobriram em Tijuco, região de Diamantina, uma jazida de diamantes, mas nem isso evitou que a sorte do Jequitinhonha mudasse ao longo dos tempos.

Suas cidades são pequenas e visivelmente carentes. Boa parte da população é dependente de acesso a programas sociais, como o Bolsa Família. Quem tem a sorte de trabalhar para órgãos públicos possui um padrão de vida de classe média. Mas a maioria sobrevive à custa de trabalhos precários, braçais, pequenos bicos. Assim, aliciar moradores para fazê-los cometer crime ambiental, promovendo o corte das matas nativas para transformar em carvão, combustível de fornos siderúrgicos, não é tarefa difícil e custa barato.

Em Capelinha, um diretor do sindicato dos trabalhadores rurais me contou que os lavradores sem trabalho nas fazendas eram contratados para fazer esse tipo de serviço com muita regularidade e em grande número. Alguns recebiam adiantado para produzir lenha para as carvoarias. Havia tanta gente envolvida nesse trabalho que imensas áreas de mata nativa estavam vindo abaixo. Produzido o carvão, as cargas eram na época despachadas em caminhões para siderúrgicas da região de Belo Horizonte. O transporte acontecia principalmente nas madrugadas, para evitar fiscalizações. “Se não fizerem algo muito rapidamente, em poucos anos o Jequitinhonha será um deserto. Será um local impossível de se viver”, disse-me o diretor do sindicato.

Em Belo Horizonte, fui ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público estadual. Queria saber se havia alguma investigação da promotoria para reprimir a ação dos lenhadores e carvoarias e o conluio com empresas do setor de siderurgia. Acabei sendo recebido por um grupo de promotores que estavam investigando uma organização criminosa que contratava lavradores para derrubar a mata. Um promotor me forneceu cópias de um procedimento investigatório já encaminhado à Justiça. Havia pedidos de buscas, apreensões e prisões. Num dos pedidos, os promotores, que assinavam em conjunto a peça acusatória, diziam: “o carvão vegetal é insumo necessário à produção do ferro e do aço, principal foco de atuação da indústria siderúrgica mineira. Para cada tonelada de ferro gusa produzido, são utilizadas três toneladas de carvão”.

A exploração de minérios de ferro em Minas é um escândalo do ponto de vista ambiental, em que pese a importância dessa atividade econômica. De volta ao Vale, fiz um desvio para passar pela cidade de Itabira, terra natal do poeta e escritor Carlos Drummond de Andrade. O solo daquela região foi todo revolvido ao longo de décadas de exploração de mineiro de ferro. A cidade é o berço da Companhia Vale. A lavra de minério destruiu matas nativas, acabou com nascentes e aquíferos subterrâneos e alterou profundamente o ambiente da região.

Embora tenha vivido a maior parte da sua vida fora de Itabira, Drummond de Andrade nunca se conformou com o estrago causado em sua terra natal pela mineração de ferro realizada pela Vale. Registrou isso em muitas crônicas e poesias publicadas em jornais do Rio de Janeiro. Era a forma que Drummond encontrou para protestar contra aquele estado de coisas.

No segundo semestre do ano passado, o professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo (USP) José Miguel Wisnik lançou o livro “Maquinação do Mundo” (Cia. das Letras). O professor fez uma pesquisa em textos produzidos por Drummond de Andrade em que reclamava e protestava contra a destruição de Itabira pela mineração. Wisnik fez sua primeira viagem a Itabira e, ao chegar lá - como eu -, foi surpreendido pelo impacto ambiental causado pela exploração do ferro. Segundo ele, montanhas viraram crateras e a vegetação sumiu da paisagem.

Uma poesia do escritor mineiro tem o título de “A Montanha Pulverizada”. Nela, denuncia que a montanha que havia no horizonte de sua cidade havia sido consumida pela máquina de mineração. “Esta manhã, acordo e não a encontro/Britada em milhões de lascas/Deslizando em correia transportadora/Entupindo 150 vagões”. Drummond se referia ao Pico do Cauê, de Itabira, que foi referência importante na sua fase de criança e adolescente na cidade em que nasceu.

Em 2014, Wisnik também se chocou ao ver que o Pico do Cauê havia desaparecido, como contara Drummond. “Em vez de uma montanha, encontrei uma cratera”, afirmou o professor.

Há mais de 200 anos, a indústria de minérios vem destruindo as Minas Gerais e outros locais do País. Minas ganhou esse nome porque, no desbravamento do seu território, o que mais se encontrou naquelas bandas foi minério: ferro, ouro e diamantes. Estava selado seu destino.

A tragédia de Brumadinho, ocorrida no dia 25 de janeiro, só vem confirmar esse vínculo trágico do homem com a terra. A exploração do solo traz riquezas, mas atrai muitas coisas ruins. Em 1681, em busca de pedras preciosas e ouro, o bandeirantes Fernão Dias Paes Leme, o Caçador de Esmeraldas, acabou morrendo de maleita às margens do Rio das Velhas, principal afluente do São Francisco nessa região do Estado.

Fernão Dias caiu no ponto exato em que o Rio das Velhas se encontra com o São Francisco. Agonizou por horas até morrer. Muitos turistas vão conhecer esse ponto famoso até hoje. Próximo do local existe uma pequena igrejinha abandonada, coberta de mato, que era usada pelos sertanistas e desbravadores nos tempos da colônia.

Ao longo da próxima semana, o rio das Velhas começará a receber detritos contaminados e contaminantes que vazaram com o rompimento da barragem da companhia Vale, em Brumadinho. É a segunda etapa de uma tragédia sem paralelos no Brasil. Primeiro, a tragédia matou ao menos 300 pessoas (contando os mortos identificados e os desaparecidos).

Agora, a segunda etapa da tragédia será a destruição não apenas de um rio, mas de vários. Suas águas contaminadas com rejeitos de minério da Vale vão cair no São Francisco. O Velho Chico passa por cinco Estados (Minas, Bahia, Alagoas, Pernambuco e Sergipe). Ao longo de seus mais de dois mil km de extensão existem 521 municípios, onde vivem cerca de 18 milhões de pessoas. Suas águas ajudam a produzir alimentos, matam a sede e fornecem o peixe.

É um patrimônio não só do Brasil, mas também da humanidade. Há dez mil anos, o rio já era importante, quando uma população pré-histórica que vivia ao longo dele tirava alimento e água, segundo estudos disponíveis na Universidade Federal de Sergipe. Era um povo pré-histórico que tinha certo grau de cultura, produzia utensílios domésticos de pedra lascada, enterrava seus mortos em urnas de argila; dominava o fogo e vivia em comunidades.

Ainda se especula a dimensão do impacto ambiental. Como o São Francisco vai reagir diante do volume imenso de detritos de minério em suas águas? Qual será o prejuízo que cidades turísticas terão por causa disso?

No pedido que o Gaeco de Minas encaminhou em 2007 para combater a quadrilha que destruía as matas nativas para produzir carvão para as indústrias siderúrgicas, um promotor mineiro ficou encarregado de preparar a petição inicial. Nela, ele escreveu: “os biomas brasileiros, que séculos atrás deram ao País o título de terra da ‘megadiversidade’, estão sendo devastados de maneira cada vez mais acelerada e indiscriminada. A Mata Atlântica, que tanto impressionou os primeiros visitantes da terra brasilis, encontra-se hoje reduzida a alguns poucos remanescentes descontínuos que, juntos, perfazem 7% do que fora o bioma originariamente. Em que pese os esforços dos movimentos ambientalistas e de setores do poder público, tamanho processo de devastação continua avançando sobre os demais biomas existentes no País, notadamente sobre a amazônia, a caatinga e o cerrado – esse último uma área prioritária (hotspot) para a conservação da biodiversidade, de acordo com a literatura científica nacional e internacional”.

Sensibilizado, o juiz autorizou buscas, apreensões e prisões. Bons advogados conseguiram, em poucos dias, reverter as prisões e os processos acabam mofando nos escaninhos dos tribunais. No livro “Não Verás País Nenhum”, Loyola Brandão escreveu em 1974 algo tão atual: “fomos nos habituando, de tal modo que passamos a pactuar com a tragédia, aceitando-a como cotidiano. Me espanta essa capacidade de acomodação da mentalidade, sua adaptação ao horror. Acredito que a gente possua um componente de perversidade que nos leva a encarar como normal esse pavor, a desejá-lo, às vezes, desde que não nos toque. Uma porcentagem de perversidade que tem sido alimentada pelo esquema, essa coisa tão abstrata, que consegue se manter em meio à anarquia, ao caos estabelecido como ordem, a anomalia mascarada em progresso”.

 

Luiz Malavolta é jornalista em São Paulo.

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